HIERARQUIA DOS CORPOS
Hierarquia dos Corpos.
João J. C. Sampaio
A palavra hierarquia é problemática até certo ponto, pois traz em si o significado de algo que não pode ser alterado. Seria, numa expressão bem ampla, uma escala sagrada de poder, isto é, o que foi estabelecido, não pode ser desfeito. E ela está sempre presente na vida dos seres humanos. A famosa pirâmide social, criada para nossos estudos, é a demonstração dessa realidade.
Dentro desse raciocínio, descobrimos que a nossa sociedade também faz uma interpretação hierarquizada dos corpos. Como participantes do mundo capitalista, habilitados em fazer tudo virar produto de consumo, notamos que os corpos são intencionalmente divididos em úteis e inúteis, de modo que os primeiros são desejados e os segundos, regra geral, minimizados, desprezados e até descartados.
Nessa ótica desumana, encontramos os corpos das crianças, que em princípio não são produtivos, mas que devem ser bem cuidados para que em futuro próximo gerem muita riqueza. Exceção, é claro, aos países como o nosso, onde vemos o corpo da criança sendo explorado desde cedo diante das enormes dificuldades de sobrevivência. Os corpos mais desejados em todos os setores da sociedade são os dos jovens, pois eles trazem em si a plena vitalidade com o constante desejo de se ultrapassarem. Esses corpos são como produtos de última geração da sociedade capitalista. Todo mundo quer possuí-los. Depois de, propositadamente desgastados, restam os corpos velhos. Falemos de idoso (dos tempos idos) porque a palavra velho sugere “ferro velho”, algo desvalorizado no mercado. Esses corpos são menosprezados pela aparente inutilidade. Nem mesmo as nossas famílias aceitam o idoso. Às vezes o suportam, enquanto pode fazer alguma coisa ou é portador de uma boa herança! Os nossos asilos são como depósitos de rejeitados... Dificilmente, lá se encontra alguém plenamente satisfeito!
Os corpos do homem e da mulher também passam pelo crivo da interpretação hierarquizada de nossa sociedade doentia e míope. No alvorecer deste novo século ainda perduram certos costumes abomináveis. Muita coisa que ao homem se permite, à mulher se proíbe. Encontramos, por exemplo, gente que faz distinção entre “homem honesto” e “mulher honesta”, “tarefas de homem” e “tarefas de mulher” ou adota formas educativas diferenciadas para menino e menina. Lembro-me de um triste costume da minha infância, quando era incentivado a chegar bem cedo, no primeiro dia do ano, na casa das pessoas para desejar “feliz ano novo”. Na interpretação tacanha da minha gente, isso trazia sorte, mas se viesse antes uma menina, poderia contar com um ano de azar! Nessa hierarquia dos corpos, ainda são poucas as mulheres que ocupam um lugar de igualdade ou de superioridade. Há até quem pense que a mulher é propriedade do homem. Quantos não foram absolvidos nos tribunais machistas por crimes passionais. Alegaram que foram maculados ou feridos em sua honra de senhor... Nem mesmo a Lei “Maria da Penha” tem reduzido os feminicídios na atualidade.
Não há como não reconhecer a existência diferenciada entre corpos e corpos. Corpos massacrados pela violenta luta do dia-a-dia e corpos esbeltos na malhação das academias. Corpos arcados pelo peso da vida e corpos parasitas, bem cuidados, vivendo às custas dos primeiros. Corpos magros e corpos obesos. Corpos maltratados, vincados de rugas e corpos reluzentes e perfumados. Corpos dos meninos de rua e corpos dos filhinhos de papai. Corpos dos carregadores e corpos carregados. Corpos com esperança e corpos sem esperança. Corpos vivos e corpos mortos...
Desejo ardentemente que essa hierarquia se rompa pela nossa postura racional, humana e cristã. Não podemos mais acolher essa injusta escala de pseudo-valores que só criam tropeços à gostosa convivência fraterna.
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